Por mais tagarelas e palpáveis, e delimitados e formatados que possamos parecer, somos preenchidos e rodeados pelo indizível. Somos falantes preenchidos e rodeados pela quietude. Somos densidade preenchida e rodeada pela vibração da vida. Somos limitação percebida, preenchida e rodeada pelo infinito. Somos forma aparentemente definida, preenchida e rodeada pelo amorfo.
Campos mórficos, infinitas formas possíveis, nos envolvem, como que flutuantes, como aqueles anjos que carregam qualidades, sem que deles nos demos conta. Citta, a consciência recolhida, tênue e frágil, desconfia, mas ainda não escuta. São poucos dias ou semanas, às vezes alguns meses, que a Natureza pede para substituir todas as células de cada um dos nossos órgãos. Lei da entropia à parte, vale perguntar: por que, então, não somos presenteados com um órgão minimamente renovado a cada vez? Por que adoecemos? Estaríamos impedidos por alguma força misteriosa de manter limpos e saudáveis esses pouco conhecidos campos mórficos que servem de modelo para determinar a manifestação de cada detalhe físico do que somos aqui no planeta? O que polui esses campos? O que escolhi ainda não enxergar e qual seria a escuta possível?
Densidade, tagarelice, limitação e forma definida no espaço e no tempo, eis a soma dos intrigantes citta vrtti que rodam e rodopiam e importunam sem parar. Representam o aglomerado dos pensamentos, sentimentos e emoções que nos habitam. Intensamente móveis, hiperativos até, operam sem cessar na mente de cada ser humano. Enganam, produzem ilusões sob a forma de raciocínios analíticos, lógicos, perfeitamente lineares, bem ancorados no que chamamos de conhecimento, com certeza provados e seguros, e é por isso que nos capturam. Não nos ocorre desconfiar.
Raciocinar produz emoções, emoções suscitam e influenciam mais raciocínios, que agora já tendem a adensar-se e perder a clareza esperada. A linearidade que pensamos levar-nos de um ponto a outro com facilidade óbvia começa a sofrer desvios, emaranhando-se na linearidade do vizinho, que é o meu espelho e a quem recorro para me afirmar e garantir a minha aceitação pelo outro. Eis que surgem os nós, aparentemente do nada. Sorrateira, a aplaudida linearidade criou projeções, expectativas, separações, julgamentos e rejeições. Trilhos estreitos que o medo inventou. Encobrem as possibilidades infinitas que preenchem a expansão que não nos permitimos experimentar. Acreditamos que não nos cabe expandir, que as infinitas formas possíveis não estão ao nosso alcance. Elas escapam à nossa compreensão e, portanto, não povoam o nosso universo mental; podemos viver uma vida toda sem sequer desconfiar de que elas existem. Que vida é essa?
A consciência está apenas recolhida e acuada, sua presença vibrante não se faz sentir ainda, a escuta ainda não se apurou. O véu de maya ainda é denso. Maya é a matrix, maya mede e, assim, na medida própria ao homem, transmite segurança e proteção. Ali, pisamos no que é de fato conhecido e reconhecido, mastigado e aprovado, testemunhado e confirmado por aqueles em quem confiamos. Maya tem por ferramenta citta vrtti. Citta vrtti é a partícula que o colapso da onda de infinitas possibilidades criou quando contemplamos uma possibilidade entre infinitas e a julgamos digna de encaixar-se na nossa realidade particular. É assim que criamos o nosso universo mental: de partícula em partícula, nos particularizamos e nos separamos de todo o mais. A cada conclusão cheia de certeza – alívio! – construímos diligentemente a realidade que vivemos. Temos cada um a sua, que nos esforçamos por encaixar num coletivo aceito, que é a sociedade que nos sustenta.
É chegada a hora, no entanto, em que os limites desse nosso córtex pré-frontal, do qual nos orgulhamos por ser uma faculdade privilegiada do ser humano pensante, terão de ser transcendidos. A sociedade, com as suas estruturas, se apresenta engripada. Sem uma transgressão rumo à transcendência, corremos perigo, nós humanos juntamente com o planeta que habitamos. Gaia, a deusa generosa, a Grande Mãe, que parecia fornecer-nos recursos infinitos, mostra sinais de cansaço. Porém, Gaia é experiente, tira de letra, sabe como renovar-se mais uma vez. Prestará socorro, desde que lhe demos ouvidos.
Onde então encontro as infinitas possibilidades que, neste agora, aparentam não estar disponíveis para que eu descubra escolhas felizes? Onde foi que a partícula travou dentro de mim e me acorrentou a uma realidade que não reconheço mais como sendo a que eu escolhi? No que se transformou esse coletivo aceito, a sociedade que me sustenta, na qual me sentia segura, que contém tudo o que acredito amar e honrar, e que agora parece latir hostilmente para mim, obrigando-me a diminuir a marcha até a quase paralisia? Sou eu, ou é o outro?
Onde está o quieto, vivo, infinito e sem forma, aquilo que me preenche e rodeia, a canção cósmica grandiosa e gloriosa que me faz sentir espaço expansivo e onde tenho o meu lugar seguro, ainda que flutuante, que faz de mim, apesar de tudo o mais que possa ser, um ponto de luz cintilante na malha de um todo que faz sentido?
Considero buscar o meu lugar de descanso. Ali, me assento como uma rocha ou como uma montanha, atenta e presente a todo o meu peso físico, à gravidade que me segura num lugar no qual não quero estar, presente ainda na minha aparente pequenez e impotência, nas minhas limitações, dores e pequenas e grandes mazelas. Abre-se a possibilidade de uma nova qualidade de olhar. Um novo conhecer. Uma percepção consciente para além de tudo o que penso saber, como uma superconsciência à qual tenho acesso toda vez que me recolho em mim. O silêncio que ali se manifesta é o do pulsar do coração, mostrando-se como vibração de frequência ainda frágil e desconhecida, descortinando a culminação de uma sabedoria para lá de milenar, que reúne toda a experiência do Universo e a disponibiliza para que a intuição, que se aguça e presta atenção, possa fazer mais e mais escolhas felizes. Toda a paranoia do fazer, fazer bem, fazer melhor, fazer perfeito como que morre na praia, levada pela suave onda do respirar que vou entregando. Quanto mais entrego, mais o quieto, vivo, infinito e sem forma me preenche e, sem alarde, passa a tudo prover com abundância exuberante e serena.
Por Lucia Ehlers – Profissional independente na área de bem estar e desenvolvimento humano; Terapeuta Craniossacral e professora de Yoga.